Atraso na entrega da obra

O direito do consumidor tem entre os seus princípios o da força vinculativa da oferta, que obriga o fornecedor a cumprir a promessa feita ao consumidor, que passa a ter força de cláusula contratual:

Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.

O art. 47, também do CDC, estatui que: ”As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”, o que significa que, em havendo divergência de informações passadas pelo fornecedor valerá sempre aquela que for a mais benéfica ao consumidor.

Por outro lado, o Direito do Consumidor é um micro-sistema jurídico que reconhece a desproporção de forças entre fornecedores e consumidores, sendo dotado de normas que são verdadeiros mecanismos de proteção à vulnerabilidade da parte mais fraca.

No caso específico, o CDC institui entre o rol de direitos básicos dos consumidores “a modificação de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais” (art. 6º, V).

Já o art. 51 do mesmo código estatui:

“São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativamente ao fornecimento de produtos e serviços que:

IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”.

Faz-se relevante observar a indústria em que já se transformou os atrasos de obras de construção civil no Brasil. Observe-se que se numa obra tem-se um universo de 200 trabalhadores com um custo mensal de R$ 200.000,00, geralmente, perto da sua conclusão se retira metade deles e o custo mensal da construtora cai pela metade. Isso, porém, implicará no atraso da obra, que por sua vez gerará uma remuneração adicional para a construtora em razão dos reajustes dos saldos devedores pelo INCC (índice nacional de custos da construção), que, via de regra, supera a inflação, sendo que a maioria dos materiais de construção são adquiridos no início da obra e estocados. Conclusão: O ganho duplo das construtoras com o atraso consistente na redução de custos e remuneração adicional pelo INCC, transformando o atraso em obras em um verdadeiro investimento.

A maioria das entidades de proteção dos consumidores entende que na medida em que o contrato confere à construtora o direito de atrasar o cumprimento de sua obrigação (entregar a unidade imobiliária), o mesmo direito deve ser conferido ao adquirente, de modo a ter um “prazo de carência” para o cumprimento de suas obrigações – realização dos pagamentos.

É absurdo pensar nos ônus enfrentados pelos consumidores em função do atraso na entrega das obras! As pessoas trabalham de sol a sol para cumprir suas obrigações contratuais, criam expectativas em função da realização do sonho da casa própria, adequam suas vidas à nova moradia e depois passam meses a fio esperando que o imóvel seja entregue, a fim de prosseguir normalmente com suas vidas. Ou seja, o consumidor se adequa, se prejudica de todas as formas, mas cumpre com seus compromissos sob pena de ser penalizado.

E a construtora? Logo, se o contrato concede esse direito à construtora, e não o defere ao adquirente, pode-se concluir que houve desrespeito à exigência do CDC no que se refere ao equilíbrio contratual. O correto seria a criação de um novel entendimento jurisprudencial: o consumidor deve ter a faculdade de ver suas obrigações suspensas a partir do momento em que a construtora excede em 30 dias o prazo para entrega do bem objeto do contrato.

Assim, o consumidor teria condições de se organizar até que o imóvel fosse entregue. De fato, sob esse prisma é possível, portanto, entender abusiva qualquer cláusula que simplesmente autorize injustificadamente a prorrogação do prazo da construtora para o cumprimento da obrigação de entregar o imóvel (art. 51, IV e XVdo CDC).

Ademais, em inúmeros casos o atraso fere os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade reproduzidos também no inciso V do art. do CDC, dentre outros diplomas legais, ganhando contornos ainda mais vivos nesta seara, por ser o direito do consumidor de ordem pública e interesse social, nos termos do art. da Lei8078/90.

Em acato a tais princípios, toda vez que ocorrer demora excessiva na entrega de imóvel, mesmo existindo cláusula de tolerância que estenda o prazo original, o consumidor poderá ingressar em juízo para ver declarada a abusividade de tal disposição, além de buscar o ressarcimento de prejuízos que tenha suportado.

Por fim, cumpre esclarecer que existe outra obrigação que deve ser discutida: A da Vendedora arcar com a cláusula penal prevista no contrato, decorrente do atraso na entrega da obra. Quando um empreendimento imobiliário é elaborado é óbvio que faz parte dele o cálculo do prazo necessário à conclusão da obra. Como discutido, nos contratos de promessa de compra e venda, porém, é sabido, as construtoras estipulam prazo de entrega posterior ao necessário, como margem de folga.

Muitas vezes, é exatamente o prazo de entrega que gera maior interesse do consumidor em assinar o contrato. Fatores interligados à atividade lucrativa desempenhada pelas requeridas, configurando o fortuito interno, são igualmente incapazes de romper o nexo de causalidade. Neste sentido:

Relação de consumo. Contrato. Promessa de compra e venda. Imóvel residencial em construção. Atraso na entrega do imóvel. Fortuito interno que se insere no risco do empreendimento. Nexo causal entre a má prestação do serviço e o prejuízo. Excludente de responsabilidade. Inocorrência. Multa contratual. Dano moral. Cumulatividade. Ação de rito ordinário proposta pelo promitente adquirente em razão do atraso na entrega do bem imóvel. Pedidos julgados procedentes para condenar as rés, solidariamente, ao pagamento da quantia de R$ 10.000,00 a título de indenização por danos morais, assim como ao pagamento da multa contratual de 2% acrescida do valor proporcional a quatorze dias, corrigida monetariamente desde outubro de 2009 e acrescida de juros de mora a contar da citação. Apelo das rés no sentido de que teria havido inobservância de prazo de tolerância de 120 dias úteis para a efetivação da entrega, de que a multa contratual arbitrada, de 2%, seria superior à prevista e inclusive da que pedida pelo autor, isso implicando em sentença ultra petita, e ainda de inocorrência de dano moral e a impossibilidade de sua cumulação com a referida multa contratual. A questão do atraso restou incontroversa, tendo as rés, inclusive, atribuído dito atraso, e sem qualquer prova, à instituição financeira, que não teria liberado de pronto o valor financiado. Fatores interligados à atividade lucrativa desempenhada pelas rés, configurando o fortuito interno, incapaz de romper o nexo de causalidade. Multa moratória contratual que não guarda identidade com a indenização de dano moral. Cláusula penal moratória não possui o caráter substitutivo contido na compensatória, quando se prefixa as perdas e danos eventualmente devidas, não havendo, assim, o alegado bis in idem. Afinal, nessa modalidade, a multa prevista visa apenas punir o retardo no cumprimento da obrigação principal. Conquanto a cumulação fique vedada na hipótese de cláusula penal compensatória, o mesmo não ocorre para a cláusula penal moratória, que não interfere na responsabilidade civil do devedor pelo seu atraso. As decisões prolatadas pelo magistrado estão submetidas aos limites definidos na ação proposta. A hipótese de que ora se cuida, não abriga a busca pelo reequilíbrio da relação contratual por meio da aplicação da teoria da base objetiva do negócio, tal como prevista no art. , inciso V, do CDC, porque no caso a fixação dessa multa se deu em percentual além do pedido autoral, este que, por sua vez, se amparou em cláusula a que ele legitimamente aderiu (fl.26). Quanto ao dano moral, tem-se que o descumprimento contratual extrapolou o mero aborrecimento gerando aflição, angústia e frustração no autor em sua expectativa de realizar o sonho de adquirir a casa própria, isso atentando contra a sua dignidade humana. Quantum indenizatório fixado em R$ 10.000,00 (dez mil reais) que guarda perfeita harmonia com as peculiaridades do caso em tela e com o princípio da razoabilidade e proporcionalidade, por isso devendo ser mantido. Sentença reformada em parte apenas para reduzir a multa, de 2% (dois por cento) para 1% (um por cento). Recurso a que se dá provimento parcial. (TJRS; Apelação Cível nº 0007864-08.2010.8.19.0205; Data de Julgamento: 31/07/2013)

Por derradeiro, deve ser analisado o dano moral decorrente do inadimplemento contratual e suas consequências no plano subjetivo de cada indivíduo. Nesse ínterim, verifica- se que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, lançou o seguinte enunciado nº 75, in verbis:

“O simples descumprimento de dever legal, ou contratual, por caracterizar mero aborrecimento, em princípio, não configura dano moral, salvo se da infração advém circunstância que atenta contra a dignidade da parte.”

Diante da constitucionalização do direito civil, publicização ou ainda despatrimonialização, os direitos da pessoa humana, tornaram-se ainda mais fortes. Por este instituto, devemos interpretar o direito civil concomitantemente com os preceitos constitucionais.

E desta forma, não há como se excluir o dano moral ocorrido, pelo simples fato de que tal dano é decorrente de inadimplemento contratual, da quebra de confiança, da frustração de um sonho de suma importância que é a moradia própria. Deve haver uma releitura das normas do direito civil, que regem as relações jurídicas e conceder maior aplicação constitucional a estas relações. Sendo o dano moral, in re ipsa, logo não há que fazer prova, está provado por si só, pelo simples ocorrido.

Ultrapassado este obstáculo, veremos que outro obstáculo é quando os julgadores entendem que o dano moral pode ocorrer no inadimplemento contratual, no entanto o atraso na entrega da unidade, de um ou dois ou cinco anos, não passou de “mero dissabor”. Como aceitar que o descumprimento do contrato de incorporação seja apenas um mero dissabor? Poderia ser um mero dissabor no caso de pessoas com altíssimo padrão aquisitivo, onde aquele empreendimento seria apenas mais um em sua vida, que logo seria substituído por outro sem ao menos ter sido visitado pelo adquirente investidor, vez que em muitos casos a aquisição de um imóvel na planta é uma forma de investimento.

E nos casos de aquisição de um imóvel através do ‘Minha casa minha vida”, fruto de um misto de sonho e suor derramado diariamente para pagar cada centavo previsto no contrato de compra e venda? Não pode ser considerado mero dissabor, uma família que junta suas economias durante anos e após de todo o esforço empenhado se vê diante de um acontecimento que desestabiliza toda a família e em muitos casos traz sim, um enorme abalo psíquico no indivíduo, brigas e stress familiares. Neste sentido:

APELAÇÃO CIVEL. RELAÇÃO DE CONSUMO. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE BEM IMÓVEL. ATRASO NA ENTREGA DA OBRA EM MAIS DE 02 ANOS, DANO MORAL MANTIDO. LUCROS CESSANTES QUE DEVEM SER REPARADOS. Promessa de compra e venda de bem imóvel celebrada em 21.05.96. Prazo de entrega do bem em 30.05.99. Cláusula contratual prevendo a prorrogação do prazo de entrega até 90 dias. Pagamento realizado integralmente. Efetiva entrega da obra mais de dois anos após o prazo contratual previsto. Alegação de motivo de força maior como excludente de responsabilidade pelo atraso da obra. Sentença de procedência parcial do pedido, condenando ao pagamento de R$ 18.000,00 (dezoito mil reais), sendo R$ 3.000,00 (três mil reais) para cada autor, a título de danos morais. Dano moral mantido, em razão do princípio tantum devolutum quantum apellatum. Entendimento consagrado pelo STJ, segundo o qual o promitente comprador tem direito a perceber, a título de lucros cessantes, valor relativo a alugueres desde a data prevista para a entrega do imóvel. Consequente alteração da sucumbência, que agora deve ser suportada pela apelada (…) (TJRJ; APELACAO 2009.001.13275; DES. REINALDO P. ALBERTO FILHO; Julgamento: 08/05/2009; QUARTA CÂMARA CIVEL)

Rescisão Contratual c. C. Indenização. Incorporação Imobiliária. Instrumento Particular de Promessa de Cessão de Direitos Aquisitivos. I – Atraso na entrega da unidade imobiliária incontroverso. Alegação que tal se ultimou por culpa da construtora encarregada das obras. Tese que não se sustenta. No desenvolvimento de suas atividades a empreendedora poderia e deveria prever inadimplências e o mais conexo, de modo a não onerar quem fielmente cumpre o contrato. Risco do empreendimento. II – Autora que adimpliu as prestações pactuadas até um mês depois da data aprazada para a entrega do imóvel. Mora exclusiva da Ré, impondo a rescisão da avença, com a devolução de todos os valores pagos, sem qualquer retenção. III – Mero inadimplemento contratual não caracteriza dano moral. Hipótese em lide que se mostra excepcional. Frustração da casa própria interferiu no comportamento psicológico da Apelada, para fins de acolhimento de tal verba.(…) (TJRJ; Apelação Cível 2009.001.23393)

Incorporação imobiliária. Atraso na entrega da obra. Indenização. Consignação em pagamento. Sentença de parcial procedência. 2. Abusividade da cláusula contratual que prevê multa pelo atraso na obra, em valor desproporcional às penalidades impostas ao consumidor. Majoração, a fim de se adequar ao efetivo prejuízo suportado pelos autores, equiparável ao valor do aluguel de imóvel semelhante. 3. Dano moral configurado. Indenização fixada por ano de atraso na entrega do imóvel, mas cujo valor deve ser desde logo consolidado, pois não pode se transformar em nova multa. 4. (…) (TJRJ; APELACAO 2009.001.08614; DES. PAULO MAURICIO PEREIRA; Julgamento: 07/04/2009; QUARTA CÂMARA CIVEL)

Embargos infringentes. Ação de rescisão de negócio jurídico com pedido cumulado de restituição de valores pagos, lucros cessantes e indenização por dano moral. Sentença que julgou parcialmente procedente o pedido, para rescindir o negócio jurídico celebrado entre as partes, condenada a construtora a devolver as quantias pagas, acrescidas de juros e correção monetária, reformada em sede de apelação, em decisão não unânime, para condenar a construtora ao pagamento de R$ 20.000,00, a título de indenização por dano moral e lucros cessantes equivalentes ao valor locatício do bem, a serem apurados em liquidação de sentença. Embargos infringentes objetivando que prevaleça a conclusão do voto vencido que mantivera os termos da sentença. Partes que celebraram contrato de compra e venda de imóvel em construção, cuja obra não foi concluída no prazo avençado. Rescisão do contrato com a restituição dos valores pagos corrigidos e acrescidos de juros. Atraso injustificado na entrega do imóvel que enseja o dever de indenizar. Lucros cessantes não verificados por inexistir evidência de que a aquisição do imóvel se destinava a locação. Dano moral configurado ante a frustração do comprador que, apesar de efetuar os pagamentos, não logrou receber o imóvel. Quantum da indenização fixado segundo critérios de razoabilidade e de proporcionalidade. Provimento parcial dos embargos infringentes.(TJRJ; EMBARGOS INFRINGENTES 2008.005.00164; DES. ANA MARIA OLIVEIRA; Julgamento: 08/07/2008; OITAVA CÂMARA CIVEL)

Sendo assim, cumpre informar que o atraso na entrega das chaves pode muito bem gerar o pagamento de indenizações por danos morais, materiais e multas contratuais, sem contar que quanto mais demandas nesse sentido mais a reputação da empresa fica abalada, eis que ninguém vai querer contratar com uma empresa que não cumpre o acordado.

Advogada formada pela Universidade de Uberaba em 2001. Inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Goiás sob o nº. 20.975. Pós Graduada em Direito Civil e Processual Civil pelo Instituto de Estudo e Pesquisa Científica sediado em Goiânia/GO e em Direito Processual Penal pela UFG. Profissional atuante em diversas áreas do Direito, sendo que desde o início de sua carreira prestou serviços a escritórios de advocacia de renome no Estado de Goiás. Autora do artigo ‘Os direitos da esposa à luz do Código Civil de 2002’, publicado na Revista do IEPC, ano 2, nº. 3, 1º semestre de 2005. Membro da Comissão de Direito Ambiental da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Goiás. Atualmente é sócia do Escritório Guilherme Soares Advogados.

3 Comments

  1. É possivel cobrar multa compensatória pelo atraso mesmo que não esteja previsto no contrato? no contrato só prevê multa para o comprador.

  2. Esses contratos são abusivos. O princípio da igualdade enuncia que as partes contratantes tem que ser tratadas de maneira igualitária. Dessa forma, é possível pedir ao juiz que estique a multa para o comprador para o vendedor a fim de trazer equilíbrio ao pacto.

  3. No meu entendimento tudo que cabe contra o comprador cabe também contra o vendedor. Isso pelo princípio da isonomia entre as partes contratantes.

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